Espelho de contrastes
Espelho de contrastes – (texto simplificado)
As variações linguísticas são reflexos do caráter pluriétnico da sociedade brasileira e da desigualdade econômica no País
Os idiomas são sistemas abertos e flexíveis e sempre se ajustam às suas condições de uso. Essa característica pode ser vista quando comparamos um mesmo idioma falado por classes sociais diferentes.
Na Roma antiga, por exemplo, o Latim culto era o Latim “clássico” ou “literário”, e só era praticado pelos aristocratas. O Latim “vulgar” era a língua usada pela maioria nas ruas, no comércio, e foi ela que deu origem as línguas Românicas, como o Francês, o Espanhol e o Português.
No Brasil não poderia ser diferente. A Língua Portuguesa, falada pela maioria da população, reflete a forma como se estrutura nossa sociedade. Nesse sentido, reforça o fato de que, desde suas origens, o País é marcado por uma distribuição de renda injusta.
Recentemente, uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou que 1% dos brasileiros mais ricos detém renda equivalente à 50% dos pobres, e que o Brasil, em uma lista de 130 países, está entre as nações mais socialmente injustas do planeta.
Instrumento de exclusão
Essa violenta má distribuição de renda se reflete também no idioma. A divisão do Português no Brasil é mais nítida na aplicação de regras de concordância nominal e verbal. Na linguagem mais popular, são comuns frases como “Aqui nós trabaia muito” ou “Minhas colega já chegô”. Na linguagem escolarizada se aplica mais frequentemente a regra de concordância, tomada como padrão na língua: “Aqui nós trabalhamos muito” e “Minhas colegas já chegaram”.
Mas, as diferentes “variantes linguísticas”, ou seja, as diferentes formas de se dizer algo, não se diferenciam pelo seu valor linguístico, mas social. Desta forma, as duas primeiras frases são avaliadas de forma muito negativa por quem tem alto poder aquisitivo. Em termos linguísticos, porém, ambas possuem o mesmo valor, já que comunicam a mesma coisa.
Não é difícil ver na TV jornalistas conceituados dizerem frases como “Entrevistei ele essa manhã”, em vez de “entrevistei-o essa manhã”- a forma tida como correta.
Uma revista de grande circulação escreveu na capa certa vez: “1995, o ano que domamos a inflação”. A variedade padrão seria “o ano em que domamos a inflação”. Mas não se costuma reparar no uso indevido do pronome nem no da regência nominal conforme o padrão normativo.
O pecado mortal é a falta de concordância. E isso tem uma única razão: ela é a grande marca da linguagem popular. Por isso geram tanta polêmica personalidades como Lula, que com seu falar popular foi presidente da república.
Português mestiço
A falta de concordância na fala popular tem razões históricas. Durante os primeiros séculos de sua colonização o Brasil foi um país rural, de pequenas cidades costeiras pouco influentes sobre o restante do território. Nas poucas cidades, a nobreza procurava falar como se fazia nas cortes portuguesas. Mesmo após a independência, em 1822, a maioria dos professores de Língua Portuguesa no império eram portugueses. Os filhos da elite brasileira estudavam na Universidade de Coimbra. José de Alencar, grande escritor dessa época, foi bastante criticado pelos purista por sua “linguagem popular”.
Ao mesmo tempo o Português conviveu com variedades do tupi faladas pelos índios que habitavam a costa brasileira no séc. 16. O tupi, adotado colonos portugueses e jesuítas na catequese, foi o idioma mais falado até o início do séc. 18.
Logo depois a mão-de-obra escrava foi introduzida no Brasil, e com ela as línguas africanas, com o predomínio do Quimbundo. Deste surgiram palavras como moleque, caçula e samba. Assim, cada vez mais o português falado nas ruas pela maioria do povo ia se distanciando do português falado pela elite econômica do país.
Perda da concordância.
Algumas das características do Português brasileiro resultaram de processos desencadeados em situações de contato entre línguas, como o predomínio do uso do pronome como sujeito (por exemplo “nós falamos diferente” em vez de “falamos diferente” ) e as consoantes finais na fala (como “trabaiá” em vez de “trabalhar”). Hábitos comuns na fala a todos os segmentos sociais e, portanto, não discrimidados
Mas um dos aspectos mais universais das situações de contato maciço entre línguas é justamente o que causa mais preconceito: a perda das regras de concordância.
Se pararmos pra analisar, essas regras não tem valor comunicativo, ou seja, tanto faz dizer “os menino já saiu” ou “os meninos já saíram”, pois o ouvinte entende que se trata de mais de um menino. Portanto, a falta de concordância nominal e verbal é a marca mais notável da influência do contato do Português com os dialetos africanos e indígenas.
Apesar disso, a elite fez prevalecer um padrão linguístico europeu até mesmo depois da independência, época em que surgiu um movimento nacionalista expresso na idealização do índio brasileiro como símbolo da nacionalidade brasileira.
Educação e aceitação
Essa situação só começou a mudar na passagem do séc. 19 para o 20, com a vinda de cerca de 3 milhões de imigrantes italianos, alemães e japoneses e, posteriormente, como consequência do processo de industrialização do País, impulsionado pelo governo Getúlio Vargas a partir de 1930.
O movimento modernista de 1922 constitui a expressão mais vigorosa dessa mudança de mentalidade, com sua irreverente contestação do purismo da sociedade patriarcal rural, propondo um resgate radical da cultura popular brasileira. Não poderia faltar a valorização da linguagem brasileira em suas variantes coloquiais, como no clássico poema de Oswald de Andrade, que com grande perspicácia escolhe como tema a colocação dos pronomes átonos:
“Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso, camarada,
Me dá um cigarro
Ao longo do século 20, com o crescimento das cidades, da democratização, da malha ferroviária e a ampliação dos meios de comunicação em massa, bem como a ampliação da rede de ensino público, a influência de Portugal sobre a fala das classes média e alta brasileira ficou cada vez menor.
Entretanto, a gramática e suas regras continuam as mesmas. Persiste, por exemplo, em nossas gramáticas escolares, a afirmação de que a ênclise é colocação normal do pronome átono (como em “parece-me que é verdade”), quando é evidente que a colocação normal no Brasil é a próclise (“me parece que é verdade”).
A manutenção desse padrão normativo gera um forte sentimento de insegurança linguística que assola, sobretudo, os segmentos escolarizados brasileiros. Quem ainda não ouviu afirmações como “o Português é uma língua muito difícil” ou “o brasileiro não sabe falar Português”? Na verdade, o
brasileiro não sabe falar o Português como se fala em Portugal, já que a Língua Portuguesa, desde o século 18, vem se diferenciando bastante nos dois lados do Atlântico.
Convergência gradual
A fala popular, apesar do que se pensa, vem incorporando estruturas da fala culta, em razão da crescente influência dos centros urbanos sobre as demais regiões do País.
Pesquisas mostram que os jovens de hoje, que têm o hábito de ver televisão e se deslocam para trabalhar nas cidades, tendem a fazer mais a concordância nominal e verbal do que seus pais e avós. Esse movimento vai contra a ideia de que os mais velhos falam melhor que a geração de hoje. Essa tendência, porém, esbarra na grave situação de exclusão social. A democratização linguística do País só ocorrerá com a efetiva distribuição de renda e a verdadeira democratização da sociedade brasileira.
As variações linguísticas são reflexos do caráter pluriétnico da sociedade brasileira e da desigualdade econômica no País
Os idiomas são sistemas abertos e flexíveis e sempre se ajustam às suas condições de uso. Essa característica pode ser vista quando comparamos um mesmo idioma falado por classes sociais diferentes.
Na Roma antiga, por exemplo, o Latim culto era o Latim “clássico” ou “literário”, e só era praticado pelos aristocratas. O Latim “vulgar” era a língua usada pela maioria nas ruas, no comércio, e foi ela que deu origem as línguas Românicas, como o Francês, o Espanhol e o Português.
No Brasil não poderia ser diferente. A Língua Portuguesa, falada pela maioria da população, reflete a forma como se estrutura nossa sociedade. Nesse sentido, reforça o fato de que, desde suas origens, o País é marcado por uma distribuição de renda injusta.
Recentemente, uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou que 1% dos brasileiros mais ricos detém renda equivalente à 50% dos pobres, e que o Brasil, em uma lista de 130 países, está entre as nações mais socialmente injustas do planeta.
Instrumento de exclusão
Essa violenta má distribuição de renda se reflete também no idioma. A divisão do Português no Brasil é mais nítida na aplicação de regras de concordância nominal e verbal. Na linguagem mais popular, são comuns frases como “Aqui nós trabaia muito” ou “Minhas colega já chegô”. Na linguagem escolarizada se aplica mais frequentemente a regra de concordância, tomada como padrão na língua: “Aqui nós trabalhamos muito” e “Minhas colegas já chegaram”.
Mas, as diferentes “variantes linguísticas”, ou seja, as diferentes formas de se dizer algo, não se diferenciam pelo seu valor linguístico, mas social. Desta forma, as duas primeiras frases são avaliadas de forma muito negativa por quem tem alto poder aquisitivo. Em termos linguísticos, porém, ambas possuem o mesmo valor, já que comunicam a mesma coisa.
Não é difícil ver na TV jornalistas conceituados dizerem frases como “Entrevistei ele essa manhã”, em vez de “entrevistei-o essa manhã”- a forma tida como correta.
Uma revista de grande circulação escreveu na capa certa vez: “1995, o ano que domamos a inflação”. A variedade padrão seria “o ano em que domamos a inflação”. Mas não se costuma reparar no uso indevido do pronome nem no da regência nominal conforme o padrão normativo.
O pecado mortal é a falta de concordância. E isso tem uma única razão: ela é a grande marca da linguagem popular. Por isso geram tanta polêmica personalidades como Lula, que com seu falar popular foi presidente da república.
Português mestiço
A falta de concordância na fala popular tem razões históricas. Durante os primeiros séculos de sua colonização o Brasil foi um país rural, de pequenas cidades costeiras pouco influentes sobre o restante do território. Nas poucas cidades, a nobreza procurava falar como se fazia nas cortes portuguesas. Mesmo após a independência, em 1822, a maioria dos professores de Língua Portuguesa no império eram portugueses. Os filhos da elite brasileira estudavam na Universidade de Coimbra. José de Alencar, grande escritor dessa época, foi bastante criticado pelos purista por sua “linguagem popular”.
Ao mesmo tempo o Português conviveu com variedades do tupi faladas pelos índios que habitavam a costa brasileira no séc. 16. O tupi, adotado colonos portugueses e jesuítas na catequese, foi o idioma mais falado até o início do séc. 18.
Logo depois a mão-de-obra escrava foi introduzida no Brasil, e com ela as línguas africanas, com o predomínio do Quimbundo. Deste surgiram palavras como moleque, caçula e samba. Assim, cada vez mais o português falado nas ruas pela maioria do povo ia se distanciando do português falado pela elite econômica do país.
Perda da concordância.
Algumas das características do Português brasileiro resultaram de processos desencadeados em situações de contato entre línguas, como o predomínio do uso do pronome como sujeito (por exemplo “nós falamos diferente” em vez de “falamos diferente” ) e as consoantes finais na fala (como “trabaiá” em vez de “trabalhar”). Hábitos comuns na fala a todos os segmentos sociais e, portanto, não discrimidados
Mas um dos aspectos mais universais das situações de contato maciço entre línguas é justamente o que causa mais preconceito: a perda das regras de concordância.
Se pararmos pra analisar, essas regras não tem valor comunicativo, ou seja, tanto faz dizer “os menino já saiu” ou “os meninos já saíram”, pois o ouvinte entende que se trata de mais de um menino. Portanto, a falta de concordância nominal e verbal é a marca mais notável da influência do contato do Português com os dialetos africanos e indígenas.
Apesar disso, a elite fez prevalecer um padrão linguístico europeu até mesmo depois da independência, época em que surgiu um movimento nacionalista expresso na idealização do índio brasileiro como símbolo da nacionalidade brasileira.
Educação e aceitação
Essa situação só começou a mudar na passagem do séc. 19 para o 20, com a vinda de cerca de 3 milhões de imigrantes italianos, alemães e japoneses e, posteriormente, como consequência do processo de industrialização do País, impulsionado pelo governo Getúlio Vargas a partir de 1930.
O movimento modernista de 1922 constitui a expressão mais vigorosa dessa mudança de mentalidade, com sua irreverente contestação do purismo da sociedade patriarcal rural, propondo um resgate radical da cultura popular brasileira. Não poderia faltar a valorização da linguagem brasileira em suas variantes coloquiais, como no clássico poema de Oswald de Andrade, que com grande perspicácia escolhe como tema a colocação dos pronomes átonos:
“Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso, camarada,
Me dá um cigarro
Ao longo do século 20, com o crescimento das cidades, da democratização, da malha ferroviária e a ampliação dos meios de comunicação em massa, bem como a ampliação da rede de ensino público, a influência de Portugal sobre a fala das classes média e alta brasileira ficou cada vez menor.
Entretanto, a gramática e suas regras continuam as mesmas. Persiste, por exemplo, em nossas gramáticas escolares, a afirmação de que a ênclise é colocação normal do pronome átono (como em “parece-me que é verdade”), quando é evidente que a colocação normal no Brasil é a próclise (“me parece que é verdade”).
A manutenção desse padrão normativo gera um forte sentimento de insegurança linguística que assola, sobretudo, os segmentos escolarizados brasileiros. Quem ainda não ouviu afirmações como “o Português é uma língua muito difícil” ou “o brasileiro não sabe falar Português”? Na verdade, o
brasileiro não sabe falar o Português como se fala em Portugal, já que a Língua Portuguesa, desde o século 18, vem se diferenciando bastante nos dois lados do Atlântico.
Convergência gradual
A fala popular, apesar do que se pensa, vem incorporando estruturas da fala culta, em razão da crescente influência dos centros urbanos sobre as demais regiões do País.
Pesquisas mostram que os jovens de hoje, que têm o hábito de ver televisão e se deslocam para trabalhar nas cidades, tendem a fazer mais a concordância nominal e verbal do que seus pais e avós. Esse movimento vai contra a ideia de que os mais velhos falam melhor que a geração de hoje. Essa tendência, porém, esbarra na grave situação de exclusão social. A democratização linguística do País só ocorrerá com a efetiva distribuição de renda e a verdadeira democratização da sociedade brasileira.
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