EM TEMPO - Ayssa Yamaguti Norek

Gente do céu, o texto dessa aluna é show demais, um deleite.




EM TEMPO 

Ayssa Yamaguti Norek


        Ao abrir os olhos, a luz lhe cegou completamente. Tudo que conseguia ver era um clarão diante da escuridão de suas pálpebras. À medida que foi se acostumando com essa passagem, seus olhos puderam interpretar a brancura do cômodo onde estava. Tudo era diferente, nada parecia real, não se lembrava de ter estado ali antes. Tentou encontrar algo conhecido, ou qualquer vestígio de como chegara ali, mas não viu nada. Só o branco das paredes. Um bip intermitente vinha de algum lugar ao seu lado. Com dificuldade virou o rosto apenas para constatar, alarmada, que se tratava de uma máquina. O visor mostrava batimentos cardíacos acelerados e fios saiam de dentro do aparelho indo ao encontro de seu corpo frágil. Sentiu seus pelos arrepiados e um frio subir pela espinha; abrupta e involuntariamente, sentou-se. Uma dor lancinante invadiu sua cabeça e músculos. Fechou os olhos, respirou fundo e com um cuidado imenso tornou a abri-los. Mexeu os braços, as pernas, a cabeça. Parecia fazer anos que ela não se mexia sequer um milímetro. A luz incomodava seus olhos. Seu corpo demoraria a se acostumar com o ambiente estranho e com a descoordenação de seus movimentos. Ela queria saber desesperadamente o que fizera e porque estava ali. Tudo parecia diferente, como se estivesse em outra realidade. Nada parecia real. No dia anterior ela estava dirigindo tranquilamente e indo para... Para onde ela estava indo mesmo? Não conseguia lembrar. As lembranças eram fugidias como a caça do caçador. Nem sabia quem era.
         Uma tontura desequilibrava o seu corpo e no meio dessa vertigem viu uma data: 12 de dezembro de 1999. Além disso, só escuridão.
         Sentindo uma ânsia de entender o que quer que fosse, ela não se importou com nada, levantou da cama e, sem delicadeza, arrancou os fios que a ligavam à máquina. A mesma tontura de antes veio ao seu encontro no instante em que colocou os pés descalços no chão. O chão estava frio. Teve de se segurar para não cair. Andou com dificuldade em direção à porta e ao passá-la, não parou, mesmo que suas pernas reclamassem a cada passo dado. Ao olhar ao redor, não reconheceu nada do que via. A compreensão, sua nova inimiga, aos poucos clareou a sua mente: ela estava em um hospital. A movimentação tão conhecida, médicos correndo de um lado para outro e pacientes andando pelos corredores. Talvez suas capacidades intelectuais ainda estivessem lentas. Ela se camuflava em meio às pessoas e, por isso, aproveitou a situação para tentar sair dali. Na surdina, conseguiu chegar até a entrada, mas foi detida.
            - A Sra. não tem permissão para sair. – comunicou o guarda, enquanto a levava para a recepção pelo braço – Encontrei esta aqui na saída.
         A expressão da recepcionista era igual à da enfermeira ao seu lado.
         - Srta. Dawson! – vindo em sua direção, a enfermeira demonstrava agitação – Não acredito que a Srta. acordou! – a pequena mulher envolveu-a num abraço terno. Quando a enfermeira afrouxou o abraço, afastou-se.
            - Eu... eu te conheço? – estava visivelmente confusa.
         - Não exatamente. – a enfermeira olhou-a inteira como que pensando alguma coisa e depois apertou um pequeno aparelho que ela não foi capaz de reconhecer. – Venha, vamos para o quarto.
            Ao chegar ao aposento, um médico observava o ambiente. Assim que percebeu a movimentação, virou-se:
         - Srta. Dawson, que bom vê-la acordada. – sua voz parecia ter uma cordialidade que não cabia naquela cena – Sei que você deve ter muitas perguntas e vou responder todas, mas antes preciso que volte pra cama para que possamos recolocar as agulhas. Você ainda está muito fraca e precisa descansar.
            - Mas eu não quero descansar. – sua voz saía distante, descoordenada.
         - Você precisa. Daqui a uma hora volto para conversarmos. – o médico disse e se retirou do quarto.
         A enfermeira ajudou-a a subir na cama e recolocou as agulhas em seu braço. Terminado o procedimento, deu um sorriso e saiu.
         Ela podia sentir a solidão se aconchegar em seu ser. Era só uma pessoa à procura de si mesma. Estava cansada de se retratar como “ela” em seus pensamentos: nem sabia o próprio nome. Ainda que agora soubesse que seu sobrenome era Dawson, apenas uma palavra sem significado, isto não trazia nenhuma recordação para a sua mente confusa. Sem esperanças de lembrar de algo, significativo ou não, de sua vida e, na expectativa de ouvir um pouco sobre si, mesmo que o médico não a conhecesse tão bem, resolveu passar o tempo. Pegou o controle remoto sobre a mesinha de cabeceira e ligou a televisão. Estava passando o jornal de fim da tarde, porém, ela não reconheceu os jornalistas, nem mesmo o ambiente do jornal. Ela pensou que isto tivesse a ver com o estado de desordem no qual se encontrava. Mudou de canal, passava uma novela. O enredo parecia meio sem sentido, não conseguiu reconhecê-lo, nem mesmo os personagens. Tornou a mudar de canal. Um programa de auditório estava começando, e o apresentador dizia:
         “Boa tarde. Começa agora mais um Programa Pop nesta sexta-feira 25. Hoje temos várias novas atrações e...”
         A partir daí não ouviu mais nada. Dúvidas enchiam sua cabeça - quanto tempo ficara desacordada? De acordo com as suas contas, 13 dias. Então já seria Natal. Mas porque nada lembrava aquela época feliz do ano? Sua agonia chegava ao auge do permitido quando o médico entrou no quarto. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele já examinava seu corpo, anotando tudo em sua prancheta.
         - Srta. Dawson, sei que deve ter muitas perguntas, mas antes deixe que eu esclareça algumas coisas. – ele disse, sentando numa cadeira ao lado da cama. - Você sofreu um grave acidente de carro e entrou em coma. – ela respirou fundo e esperou. Pressentiu que o pior estava por vir. – Perdemos qualquer esperança de que você fosse acordar, tamanha a duração de seu coma. Chegamos a pensar em eutanásia, mas não conseguimos contato com nenhum parente seu.
         - Eutanásia? Mas eu só fiquei desacordada por 13 dias. – falou, sua voz ainda soava estranha e embargada, mas ela não ligou, tinha assuntos mais importantes para discutir no momento.
         - 13 dias? Você está em coma por quase 13 anos.
         Aquilo foi chocante: 13 anos? Tanto tempo desacordada. O mundo havia mudado, as pessoas também, e ela não conseguia se lembrar de nada. De repente, relembrou das palavras do médico: “não conseguimos contato com nenhum parente seu”.
         - E a minha família? – perguntou, engolindo em seco, já temia a resposta.
         - Nós só temos o telefone de sua tia, mas nunca conseguimos contatá-la.
         Respirou fundo, tentou conter os tremores que atravessavam seu corpo.     
         - O que vou fazer quando receber alta?
         - Nós tentaremos contatar a sua família novamente, ao que me parece vocês não tinham uma boa relação. Prometo encontrar uma solução – olhou para o relógio na parede– Desculpe, tenho que ir.
         - Será que você podia me dar o telefone da minha tia? Eu gostaria de tentar falar com ela.
         - Claro.
         - Qual é o meu nome? – estava confusa.
         - Amellie. – o médico disse anotando alguma coisa em sua prancheta antes de sair.
         Ela ainda não se sentia pronta para encarar a realidade. Resolveu apenas fechar os olhos.

***
         Acordou assustada, depois de um sonho vívido. Sabia que era uma lembrança, a realidade batia em sua porta. No sonho viu uma senhora, lembrava seu sorriso peculiar, os olhos repuxados nos cantos. Rugas estavam distribuídas em seu rosto, deixando a impressão de uma longa vida. No entanto, o sonho mudou no exato segundo em que ela irrompeu pela porta: começava um pesadelo.
         “Amellie, querida, o que aconteceu?” perguntou aquela senhora
         “Vocês só sabem mentir, não é?” ela gritou “Em nenhum momento podem me dizer a verdade. Pois sabe o que mais? Eu cansei!” a expressão da senhora foi ficando mais e mais triste e seus olhos se encheram de lágrimas.
         “Nós só fizemos isso para o seu bem.” Falou baixinho.
         “Mentira. Vocês esconderam tudo de mim. Eu não acredito mais em vocês.”
         “Me desculpe.” Disse, enquanto fungava.
         “É tarde demais para desculpas. Vocês estão mortos para mim.” Disse abruptamente enquanto saía batendo a porta.
         Sem ter ideia do porquê, sabia que aquilo havia realmente acontecido. Estava se lembrando de sua vida, de seus erros. Cansada e não querendo lembrar de mais nada, ligou a televisão. Passava um programa estranho, que logo ela descobriu que se chamava BBB. Assistiu um trecho do programa e ficou espantada com o que via. O mundo havia mudado completamente. Passar em TV aberta um programa com aquele baixo nível, onde as pessoas só sabem falar mal das outras e não se importam com a própria privacidade, era um absurdo completo para Amellie. Ela não queria nem ouvir as músicas recentes, com medo de que encontrasse algo tão esdrúxulo quanto aquele programa. Vencida, desligou a televisão - o sono se apossava de seu corpo e não viu nenhuma saída, exceto dormir.
         Ao acordar, não se sentia mais cansada: na verdade, ela se sentia bem o suficiente para levantar. Chamou a enfermeira e pediu sua ajuda. Depois de dez minutos, podia se locomover, carregando o soro para onde fosse. Amellie não teve a oportunidade de reparar no hospital e em todas as mudanças que os 13 anos haviam deixado. As pessoas viviam cercadas de tecnologia, presas em seus mundos particulares, atrás das telas de computadores. Ela não podia reconhecer todos os aparelhos, mas entendeu que a internet se tornara algo livre e disseminado. Celulares tinham se tornado cada vez menores e melhores - tecnicamente o mundo tinha progredindo. O que ela não conseguia entender era exatamente em que direção o mundo estava progredindo; na sua lógica, o mundo poderia estar regredindo, a cada passo à frente, um passo atrás. O que uma televisão poderia fazer trazer de bom se as pessoas só assistiam aquelas coisas? As pessoas só viam as sombras da vida, elas viviam numa caverna, como Platão disse. A quantidade de pessoas que deu entrada no hospital em estado de embriaguez deixou-a preocupada, era como se a bebida espantasse todos os males. Isso era a vida? Estava decidida a não compartilhar esta perda de identidade. Queria ser diferente, queria poder mudar o mundo, queria conseguir mostrar a todos o que eles estavam perdendo. Mas como ela iria fazer isso se não tinha a menor ideia de quem era. Afinal, quem é Amellie Dawson?
         - Ela acordou, doutor? – Amellie ouviu uma voz conhecida. –Posso falar com ela?
         - Não agora. Ela ainda está se recuperando e infelizmente ela está sofrendo uma amnésia temporária, e não vai se lembrar da senhora.
         - Mas eu preciso falar com ela.
         Amellie sabia que falavam dela, a voz era familiar. Levada pela curiosidade, caminhou até a entrada do hospital. No momento em que seus olhos encontraram aqueles outros, percebeu tudo: era a mesma senhora do seu sonho.
         - Amellie, querida! – ela disse e andou rápido até seu encontro, envolvendo-lhe em seus braços finos.
         - Oi. – falou sem jeito.
         - Você não se lembra de mim. – suas feições murcharam.
         - Mais ou menos. Eu me lembro de uma de nossas conversas, na verdade, - pensou – de uma discussão. Eu fui muito má com você.
         - Eu certamente mereci, querida. Mas não quero falar sobre aquilo, o que importa é que você está aqui e eu estou muito feliz.
         - Você não vai me dar um sermão?
         - A vida é muito curta para desentendimentos. A gente aprende isso à medida que vai envelhecendo. Além do mais, foram 13 anos de coma, 13 anos sem poder falar contigo, ver o seu sorriso e sem poder reparar o meu erro. ‘Seja a mudança que você deseja ver no mundo’, foi o que disse Mahatma Gandhi. – e sorriu.
         - Não me lembro.
         - Isto não é importante, – a senhora olhou bem fundo em seus olhos – Lembro o suficiente por nós duas. Sou Charlotte Dawson, sua avó.
         Amellie teve certeza de que, qualquer coisa que ela tivesse escondido algum dia, ia ficar no passado. A frase de Gandhi fez com que ela refletisse. Sabia que a partir daquele momento sua vida seria uma eterna mudança. Iria, aos poucos, lembrar tudo o que vivera e teria que se acostumar com o novo mundo em que estava. Tinha que mudar. Sem mudanças a vida não dura, afinal, ela passa rápido demais. O que se pode fazer de melhor? É uma questão de querer, a mais pura vontade. Se você não pode, tem que admitir que precisa de ajuda. Todos precisam. A mudança tem extrema importância e será um passo em direção ao conhecimento e a transmissão do mesmo para o mundo que já não pode mais ver. Amellie queria fazer parte disso, precisava fazer parte. Aprender a perdoar, a aceitar as diferenças, a mostrar ao próximo aquilo que ele já não é mais capaz de entender. Amellie acreditava no futuro, mas para que ele chegasse, precisava mudar o presente.
         Foi quando prestou atenção em uma música que tocava no quarto vizinho: “Faltou luz, mas era dia, o sol invadiu a sala e fez da TV um espelho, refletindo o que a gente esquecia, faltou luz mas era dia” – O que sobrou do céu, O Rappa.
           

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