TEXTOS DE NELSON RODRIGUES - 2º ANO
Gente, esse são os textos que passei na última quinta, dia 10/05. Os vídeos estão logo depois. BJ BJ.
O HOMEM FIEL
Até o quinto encontro, Simão foi um namorado exemplar. Tratava a pequena
como se fora uma rainha e mais: — levava-lhe, todos os dias, um saco de pipocas, ainda
quentinho, que comprava num automático da esquina. Encantada, Malvina vivia
dizendo para a mãe, as irmãs e as vizinhas: — “É o maior! O maior!”. Mas no sexto
encontro fez-lhe uma pergunta:
— Tu acreditas em Deus?
Respondeu:
— Depende.
Admirou-se:
— Como depende?
Simão foi de uma sinceridade brutal:
— Acredito, quando estou com asma.
Malvina recuou, num pânico profundo. No primeiro momento, só conseguiu
balbuciar: — “Oh, Simão!”. Mas ele, com a sinceridade desencadeada, continuou:
— Com asma, eu acredito até em Papai Noel!
Então, Malvina, que tinha suas alternativas místicas, rebentou em soluços. Por
entre lágrimas, exclamava: — “É pecado! É pecado!”. E gemeu, ainda:
— Deus castiga, Simão, Deus castiga!
O ASMÁTICO
O pranto da menina não estava nos seus cálculos. Era, no fundo, um sentimental,
um derramado, e só faltou ajoelhar-se aos seus pés. Pedia, fora de si: — “Perdoa, meu
anjo, perdoa”. A garota apanhou o lencinho na bolsa, assoou-se e teve a acusação
infensiva: — “Você é mau, Simão!”. Apaixonado pela menina, tratou de reconquistá-la:
— “Escuta, coração”. E começou a explicar que não perpetrara nenhuma troça cruel e
sacrílega. Afirmou que todos os seus defeitos e todas as suas qualidades, inclusive a fé,
eram de fundo asmático. Exemplificou: — Quando eu me casar, hei de ser fiel. Mas podes ficar certa: — como tudo o
mais, a minha fidelidade há de ser de fundo asmático.
A menina toma um choque. Por um momento, esqueceu a irreverência que, a
princípio, lhe parecera diabólica. Já que ele falava em fidelidade, ela dispõe-se a esquecer
a duplicidade de ateu intermitente e de crente eventual. Era uma dessas criaturas para
quem tudo se resumia no problema de “ser ou não ser traída”. Agarrou-se a ele:
— Responde: — tu não me trairás nunca?
Bufa:
— Com minha asma, eu não agüento nem com uma, quanto mais com duas
mulheres!
E ela:
— Meu filho, quero te dizer uma coisa: — topo fome, pancada, tudo, menos
traição. Traição, nunca!
Simão agarrou a pequena. Beijou-a na face, na boca e no pescoço. A mão correu
pelas costas, afagou-a nos quadris. Com as nádegas crispadas, Malvina sentia-se
agonizar, morrer. Ele disse, já com dispnéia:
— O asmático é o único que não trai!
Até o dia em que se fizeram noivos, foi este o único incidente. Daí por diante,
não se podia desejar maior concordância de tudo: — de educação, de temperamento, de
gosto, de inteligência. Ele se dividia entre as duas: — a garota, que era a sua paixão, e a
asma que, de quando em vez, o acometia. Na primeira vez em que o viu com acesso, ela
compreendeu subitamente tudo. Na casa dos pais, de bruços sobre a mesa, o infeliz
pedia:
— Andem sem sapatos, andem de meia!
Até um som parecia agravar as suas tremendas dificuldades respiratórias. E a
família andava realmente na ponta dos pés, ou descalça, falando baixo ou não falando.
Malvina voltou apavorada. Na sua impressão profunda, disse para a mãe e para as
irmãs:
— Agora eu compreendo por que um asmático não pode ter amantes!
Ficaram noivos e marcaram o casamento para daí a seis meses. Malvina adquirira
idéias próprias sobre a felicidade matrimonial. Doutrinava as amigas:
— Descobri que o marido doente é uma grande solução. Pelo menos, não anda
em farras!
Protestaram: — “Nem oito, nem oitenta!”. Então, na sua veemência polêmica, ela
argumentou com o próprio caso pessoal: — Por que é que eu briguei com o Quincas? Ele tinha uma saúde formidável e
que me adiantou? Me traía com todo mundo e não respeitava nem minhas irmãs!
Era verdade. O antecessor de Simão era um rapaz atlético, de impressionante
perfil, moreno como um havaiano de Hollywood. Mas Malvina, que o amava com
loucura e, além disso, tinha vaidade do seu físico, rompera por causa de suas
infidelidades constantes e deslavadas.
AS BODAS
Graças a Deus, não teve, jamais, com o Simão o problema da fidelidade. Até com
a noiva ele era moderadíssimo. E se a menina, na sua patética vitalidade, expandia-se
demais, o rapaz atalhava: — “Não exageremos, meu anjo”. Ela, que se gabava de ter
controle, obedecia, imediatamente. Até que chegou a véspera do casamento. Na altura
das duas da noite, Simão despediu-se. Malvina, amorosíssima, veio levá-lo até o portão.
Suspirava: — “Falta pouco, não é, meu filho?”. E quando o noivo já partia Malvina o
retém, com o pedido: — “Dá um beijo, mas daqueles!” . — E já entreabria, já oferecia a
boca, num anseio de todo o ser. Ele, porém, recua: — “Não, meu bem, não!”.
Pergunta, sem entender: — “Por quê?”. E ele:
— Bem. É o seguinte: fui, hoje, a um novo médico e ele disse que eu não devia
me emocionar.
— Ué!
O noivo insistiu:
— Pois é. Pediu que eu tivesse cuidado com a lua-de-mel, porque esse negócio de
amor mexe muito com a gente e pode provocar uma crise.
Atônita, Malvina não teve o que dizer. Contentou-se com o beijo que Simão lhe
deu na face e voltou. Houve o casamento: — no civil, às duas e meia, e o religioso, às
cinco. Como ameaçasse chuva, Simão voltou da igreja atribuladíssimo. No automóvel,
veio dizendo, já ofegando:
— Imagina tu a calamidade em vinte e oito atos: — estou sentindo uns troços
meio esquisitos!
Malvina, muito doce e muito linda no vestido de noiva, balbucia:
— Isola! PRIMEIRA NOITE
Passaram, rapidamente, pela casa dos pais da noiva. No convite, estava a
advertência: “Cumprimentos na igreja”. Malvina mudou a roupa, despediu-se dos
parentes de ambos os lados e partiram de táxi, para a nova residência, um apartamento
não sei onde. Esta ventando e Simão, no pavor da asma, explodiu: — “Espeto!
Espeto!”. De braço com o marido, no táxi, Malvina quis ser otimista: — “Não há de ser
nada!”. Pois bem: chegam no apartamento. A pequena, que, há tanto tempo, sonhava
com aquele momento, atira-se nos braços do noivo: — “Beija-me! Beija-me!”. Há esse
primeiro beijo, que a menina, fora de si, quer prolongar. Súbito, Simão desprende-se.
Ela tenta retê-lo, mas o rapaz a empurra. Arquejante, uns olhos de asfixiado, está
dizendo:
— A asma! A asma!
Atira-se em cima de uma cadeira, imprestável. Estupefata ela protesta: — “Mas
logo agora!”. E ele, liquidado: — “O beijo atrai a asma!”. Malvina está desesperada.
Vem sentar-se ao seu lado. Simão, porém, a escorraça: — “Pelo amor de Deus, não fala
comigo! Vai dormir...”. A pequena ainda quis acariciá-lo nos cabelos, mas ele a
destratou: — “Vocês só pensam em sexo!”. Era demais — sem uma palavra, ela foi
para o quarto, ao passo que o marido, na sala, desmoronado, arquejava como um
agonizante. Assim passaram a primeira noite e mais: as quinze noites subseqüentes. Só
na décima sexta é que Simão começou a melhorar. Então, Malvina foi visitar a mãe. E,
lá, diante da velha, explodiu em soluços:
— Eu sou a esposa que não foi beijada, mamãe.
A velha quis, em vão, consolá-la. Saiu de lá mais desesperada do que antes. O
marido a recebe com a seguinte idéia: — “Descobri, minha filha, que o beijo provoca
asma. Vamos rifar o beijo”. Resposta: — “Você é quem sabe”. Mas três dias depois
Malvina liga para o Quincas:
— Você pode ser cínico, sujo, canalha, mas sabe amar.
Conversaram uma meia hora. No fim, Quincas passou-lhe a rua e o número de
um apartamento, em Copacabana. No dia seguinte, Malvina foi lá.
A GRANDE MULHER
Ia com o amigo pela calçada quando a viu.
— Olha!
— O quê?
— Espia!
Os dois abriram alas para que ela passasse. E Nilson fez o comentário
maravilhado:
— Que uva!
Mas já o outro a identificara:
— É a Neném!
— Quem?
O amigo repetiu e explicou que se tratava de uma mercenária do amor. O espanto
de Nilson foi indescritível: “Parece uma menina de família!”. Exagerava, porém. Era
sensível a condição de Neném. Percebia-se no olhar, de uma doçura viva e proposital,
no sorriso persistente, no batom violento, que pertencia a uma profissão muito especial
que, segundo já se disse, “é a mais antiga das profissões”. Nilson suspirou:
— Ah, se eu não fosse casado! Te juro que hoje mesmo metia as caras!
NENÉM
De fato, era casado e podia dar graças a Deus, porque tivera muita sorte. A
esposa, que se chamava Geralda, possuía todas as virtudes possíveis e desejáveis.
Pertencia a uma das melhores famílias do país, sabia dois ou três idiomas, era física e
espiritualmente um modelo. De resto, saíra de um colégio interno para casar-se seis
meses depois. O pai de Geralda, com indisfarçável vaidade, pôde dizer ao genro:
— Meu caro Nilson, minha filha é pura da cabeça aos pés. Nunca houve, note
bem, nunca houve uma noiva tão decente. E Nilson respondeu, grave e emocionado: “Realmente, realmente”. Estavam
casados há um ano e meio, e, até aquela data, jamais um atrito, um equívoco, uma
discussão turvara a sua felicidade conjugal. Geralda não elevava a voz, não se exaltava,
falava baixo e macio; e quando achava graça jamais ultrapassava o limite do sorriso.
Eliminara de seus hábitos e modos a gargalhada. Por força da convivência, o próprio
Nilson, que era exuberante por natureza, um pouco desleixado, continha-se. Em casa,
era incapaz de rir mais alto, de usar gíria. Por vezes, tinha a impressão de que, no seu
lar, estava amordaçado. No dia em que viu Neném pela primeira vez, voltou para casa
com um remorso pueril. Disse mesmo ao amigo que, na ocasião, o acompanhava:
— Homem não presta mesmo!
— Por quê?
E ele:
— Veja você: sou casado com o anjo dos anjos. Mas bastou passar uma mulher
ordinaríssima, como essa tal Neném, e eu já estou com água na boca!
O fato é que desejaria não olhar, nem sonhar com outra que não fosse a esposa
tão nobre e tão amada.
A SURPRESA
Mas nessa noite aconteceu, na vida de Nilson, um fato muito interessante. Ele
tinha, geralmente, um sono ótimo, fácil e contínuo. Dormia sempre antes da mulher e
acordava no dia seguinte. De madrugada, porém, despertou com uma azia tremenda e
golfadas ácidas sucessivas e desagradabilíssimas. Deduziu: “Alguma coisa que eu
comi!”. Fez ainda a blague irritado: “Estou com gosto de guarda-chuva na boca!”.
Levantou-se, foi tomar um sal amargo qualquer e voltou para a cama. Geralda
Maria dormia profundamente. Mas a azia de Nilson continuava; gemeu: “Bolas!”. E, de
repente, em pleno sono, Geralda virou-se na cama, resmungou uma porção de coisas
sem nexo e, por fim, sussurrou o pedido nítido: “Me beija...”. Evidentemente dormia,
ou por outra, sonhava. Como ele não se mexesse, ela teve a iniciativa: arrastou-se na
cama, aproximou o próprio rosto do dele e entreabriu os lábios para o beijo. Repetia o
apelo: “Me beija, Carlos...”. Automaticamente Nilson deu o beijo, mas o nome
desconhecido estava dentro dele. Ela insistia: “Carlos, Carlos”. Acariciava-o com a mão
no rosto, nos cabelos. Então, no escuro, Nilson fez a revisão de todos os amigos, conhecidos e parentes. Quebrava a cabeça: “Conheço algum Carlos?”. Acabou se
convencendo: não, não conhecia. Sempre em sonho, Geralda puxa a camisola e passa a
perna por cima dele.
De manhã, diante do espelhinho, fazendo a barba, pergunta: “Você conhece
algum Carlos, meu anjo?”. Houve, antes da resposta, um silêncio muito grande, um
silêncio grande demais. Finalmente, no quarto, Geralda Maria disse, com uma
naturalidade que Nilson achou esquisita:
— Não, não conheço. Por quê?
Ele pigarreou: “Por nada!”.
Mas já começava a sofrer.
CARLOS
Depois da barba e do banho, desceu para o café. Neste momento bateu o
telefone. Atendeu e teve que repetir “alô” três vezes, porque a pessoa que estava do
outro lado da linha pareceu hesitar. Finalmente, uma voz masculina perguntava:
— Quem fala?
Deu o número e a pessoa disse: “Engano!”.
E, de fato, podia e devia ser engano. Nada mais comum, nada mais trivial do que
uma ligação errada. Todavia, Nilson foi tomar café com uma brusca e definitiva certeza:
a pessoa que falara era o Carlos! Foi tão agudo o seu sofrimento que saiu. Na cidade,
sentia-se numa prostração absoluta. E, de repente, teve uma iniciativa sem nenhuma
lógica aparente; ligou para o amigo da véspera pedindo o endereço de Neném. O outro
achou uma graça infinita.
— Mas o que é que há contigo? Estás apaixonado?
Foi malcriado: “Vai lamber sabão!”. De noite, depois do serviço, bateu na porta
de Neném. Ela o atendeu com um quimono muito bonito, bordado de ponta a ponta.
Sentaram-se. Nilson, num humor sinistro, fez uma graça triste: “Estou sem níquel!”. A
pequena riu, ao mesmo tempo que punha uma pedrinha de gelo no copo de uísque.
— Não faz mal.
E ele, surpreso e encantado: “Você fia?”.
Confirmou com a cabeça. Nilson, divertido, prolongou a brincadeira: “Olha que
eu posso te dar o beiço!”. Neném ria, ainda. — Então, meu filho, o azar é meu!
Duas horas depois ele apanhou a carteira: “Brinquei contigo. Tenho dinheiro,
sim. Toma”. Estendia uma nota de quinhentos cruzeiros que ela recusou. Advertiu,
porém: “Mas não conta a ninguém, não, que foi de graça. Se a madame sabe, vai subir
pelas paredes”.
DUPLA EXISTÊNCIA
E então começou a ter “duas vidas”, uma em casa, com a esposa; outra, na rua,
com a Neném. Dia e noite pensava no tal Carlos. No escritório, distraído, escrevia dez,
vinte vezes esse nome. Depois picava o papel e o punha na cesta. Suspirava: “Acabo
maluco”.
E só vivia, realmente, quando estava com a Neném. Ela teimava em não aceitar
um tostão de Nilson. Explicava: “Você não me deve nada, você é meu convidado”.
Chegava-se para perto do rapaz:
— Fiz fé com tua cara. Eu sou assim. Gostei, pronto, acabou-se.
Era assim com ele. Em compensação só faltava arrancar o couro dos outros
fregueses. No seu entusiasmo, Nilson abria-se com os amigos: “Que pequena! E faz
tudo, percebeste? Topa tudo!”.
Tanto fez propaganda que um dos seus amigos resolveu fazer uma experiência
pessoal e direta. E, de noite, procurava Neném. Esta, que nunca o tinha visto mais
gordo, recebeu-o muito bem, sentou-se no seu colo, e, enfim, fez a festa necessária e
convencional, e súbito acontece o imprevisto. O sujeito se lembra de dizer: “Sou amigo
de fulano”. Ela estacou:
— Do Nilson?
— Sim. Do Nilson. Por quê?
Foi terminante. Ergueu-se e pôs tudo em pratos limpos: paciência, mas com um
amigo do Nilson não queria história.
Houve um verdadeiro escândalo. As colegas de profissão intervieram: “Você está
maluca? O que é que tem? Ora veja!”. Mas Neném foi irredutível: “Se fosse outro
qualquer, muito bem. Mas um amigo de Nilson, nunca”. Nilson soube e, embora não o
dissesse, experimentou um sentimento de vaidade e de pena. Brincou, comovido:
— Você é o que é. E vale mais do que uma dona que eu conheço! A TROCA
Um dia, na casa do sogro, houve uma festa grã-finíssima. Nilson compareceu, de
braço com a mulher. E bebia uma primeira taça quando o sogro se aproxima: “Você
conhece o Carlos?”. Virou-se, atônito. Diante dele estava, realmente, o Carlos. Já não
era, apenas, um nome. Súbito, convertia-se em pessoa viva, material, tangível. Agora, se
quisesse, podia até matá-lo. Houve, de parte a parte, um “muito prazer”. Carlos,
simpático e quase bonito, inclinava-se, pedia licença e se afastava. Dentro em pouco,
Nilson o via dançando com Geralda Maria. Ela se deixava levar, transfigurada.
Gradualmente o álcool foi agravando, exasperando seu ressentimento. De repente o
sogro bateu-lhe no ombro. Em voz baixa pergunta:
— Você não dança com sua mulher?
Espantou-se: “Eu?”. E o velho: “Vá dançar com sua mulher”. Nilson, com os
olhos injetados, pousou a taça e disse: “Vou, sim. Vou dançar com minha mulher”.
Caminhou com um passo incerto para o telefone e fez uma ligação. Dez minutos
depois ele, que fora para o portão, voltava de braço com a maravilhada Neném. Assim
que ela descera do táxi, ele, completamente bêbado, anunciou-lhe: “De hoje em diante,
és minha mulher para todos os efeitos”.
O sogro o viu, entre os outros convidados, dançando com aquela desconhecida.
E quando o genro passou quis repreendê-lo. Então, Nilson, largando Neném, espetoulhe o dedo no peito:
— Olha aqui, seu cretino. Minha mulher é esta! E você, sua filha, o Carlos que
vão para o diabo que os carregue!
Trôpego, mais bêbado do que nunca, abandonou a festa, levando a assombrada
Neném.
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