GENI E O ZEPELIM

Olá, meu querido 3º ano! Vou começar a postar as interpretações das músicas que vimos em sala, bem como alguns vídeos. Espero que curtam. BJ BJ




Por: Luciane de Paula 


Introdução


 “Geni e o Zepelim” é uma canção extremamente crítica de Chico Buarque e sua crítica à hipocrisia social e ao falso-moralismo religioso dos moralistas da época de sua criação ocorre por meio da ironia. Assim, a ironia é o elemento subversivo que relativiza os sujeitos, os mundos e os poderes existentes na canção. A crítica feita pela ironia quase cínica da canção a retira do tempo cronológico datado e a eleva à condição atemporal própria do discurso estético. Para tratar desse aspecto é que analisaremos como a construção estética da canção revela a discriminação e o comportamento hipócrita da sociedade, que clama e aclama Geni ao precisar de seus serviços ou, sem estar em suas mãos, a apedreja. Da mesma maneira, trataremos das vozes sociais representadas pelas figuras do comandante, do prefeito, do bispo, do banqueiro e da cidade e da coerção sobre Geni. Tudo intermediado pela voz do narrador, que orquestra toda a narrativa por meio da ironia e do duplo sentido de seu discurso. Por meio de um discurso malandro (e em harmonia com a obra da qual faz parte a canção e o disco em que ela se encontra), o narrador fala sobre Geni, sem delegar voz a ela. Usa-a, como faz todos os demais sujeitos da canção, aos quais delega voz e, em cada uma delas, instaura sua crítica de maneira sutil, invertendo valores e subvertendo imagens de sujeitos no tempo e no espaço da canção e do mundo, deixando em suspenso e em aberto, para reflexão, a sanção delegada a Geni pela cidade, que representa todos nós.

(...)

A canção aqui analisada como corpus deste artigo foi uma das mais divulgadas e de maior sucesso da peça Ópera do Malandro, um musical de 1977/1978 de Chico Buarque. Estourada nas rádios na época, ela foi e é uma das canções mais populares do álbum lançado um ano após a estréia da peça. Crítica à hipocrisia e ao poder, ela reinou nos, conhecidos como, “anos de ferro”, em plena ditadura militar no Brasil. Todas as rádios tocavam e a população cantava em coro os refrões da canção, nem sempre com a compreensão da unidade estética crítica da mesma, uma vez que a crítica se revela ao considerar toda a narrativa da canção e não apenas o refrão, que parece acusar a sua protagonista, Geni, uma travesti que, na verdade, é a heroína injustiçada do enredo. É o refrão que revela o preconceito e a hipocrisia de toda a cidade com a heroína prostituída, apedrejada como Maria Madalena. Pode ser que por parecer ir ao encontro da ideologia hegemônica discriminatória e falso-moralista pre-dominante no período militar (mas não só) que a canção tenha sido aceita e passado pelo crivo da censura da época, mesmo indo de encontro a essa ideologia.

Musicalmente, essa crítica também aparece em harmonia com a letra. No entanto, como nosso objetivo aqui é analisar o papel da narrativa da canção na composição dos valores sócio-culturais acerca da figura de Geni, consideraremos apenas a letra da canção, tal qual segue:



Geni e o Zepelin



De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

  
Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia

Quando vi nesta cidade
Tanto horror e iniqüidade
Resolvi tudo explodir
Mas posso evitar o drama
Se aquela formosa dama
Esta noite me servir

Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
  

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni
  
Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni[2]



Explanado o percurso traçado e o corpus, vamos, de fato, às questões pertinentes citadas.

Geni sem seu zepelim

Para tratar do gênero de Geni, precisamos considerar a obra em que a canção se encontra, pois, na Ópera do Malandro, Geni é uma travesti que, como outras mulheres, vive de prestar seus serviços sexuais num bordel barato, freqüentado por “tudo que é nego torto / Do mangue e do cais do porto”: “O seu corpo é dos errantes / Dos cegos, dos retirantes / É de quem não tem mais nada”. Além disso, ela não pertence como objeto ao bordel onde trabalha e frequenta. Ela é dona de seu próprio nariz e vive e faz de seu corpo o que quer, com quem e como quer. Afinal, na descrição que segue sua apresentação, na primeira estrofe da canção: “Dá-se assim desde menina / Na garagem, na cantina / Atrás do tanque, no mato / É a rainha dos detentos / Das loucas, dos lazarentos / Dos moleques do internato / E também vai amiúde / Com os velhinhos sem saúde / E as viúvas sem porvir”. Não há, pela descrição feita, preconceito com gênero e faixa etária, mas há uma escolha implícita: ela se identifica e se relaciona com os excluídos sociais, por ser um deles. Tanto é que, ao ser escolhida pelo comandante, a primeira reação é dizer não porque “prefere amar com os bichos”. Em sua apresentação, o narrador revela o “segredo” (“e isso era segredo dela”) de Geni: “também tinha seus caprichos” – o lexema “caprichos”, usado com ironia, revela o pensamento non sense da cidade, uma vez que os “caprichos” se referem à escolha de se dar a quem, quando, como e onde quiser, enfim, de ser dona de seu próprio corpo e vontade. Essa apresentação que parece valorar negativamente a “escória” social se inverte com a presença do comandante, da cidade (como se os sujeitos citados acima não pertencessem à mesma), do prefeito, do bispo e do banqueiro. Há uma diferença entre Geni e as prostitutas que vai além da anatomia: Geni “dá-se” e não “vende-se”.

No entanto, na letra da canção de Chico Buarque, todos os elementos discursivos se referem a Geni no feminino (ela, donzela, namorada, rainha, menina, na, feita, boa, maldita, “aquela formosa dama”, “essa dama”, coitada, singela, dela, bendita e, inclusive, o seu nome próprio), o que gera um efeito de sentido de dubiedade – afinal, nada indica que Geni não seja uma mulher, ou melhor, que ela seja um travesti. A opção de apagamento dessa importante marca do gênero da heroína da canção a coloca e trata com respeito: independente do gênero, Geni é tratada/marcada pela descrição no feminino, com respeito à sua escolha de ser uma mulher, como outras, ainda que “diferente” – no sentido de especial, dado o seu poder (fálico) na canção, pois é ela a escolhida pela co-mandante para salvar a cidade (“logo ela”). Além disso, a ausência dessa marca de gênero também cria o efeito de sentido de mascaramento do poder de quem é co-mandante e de quem é co-man-dada, e, com isso, o efeito de sentido da crítica irônica ao poder militar (em plena Ditadura) se dilui e passa a ser possível relativizar, por meio do deboche (a partir da escolha do “comandante” e seu “zepelim”), o poder militar, criticado às raias da ridicularização. Até hoje há quem pense que Geni seja uma prostituta, uma mulher. A indeterminação do gênero também coloca no mesmo plano prostitutas, travestis, homossexuais e “tudo que é nego torto”.

(...)

Os estudos de Foucault e Bakhtin mostram como o discurso excludente e moralista que assola o pensamento hegemônico da sociedade contemporânea foi se constituindo e se estabilizando ao longo dos séculos e incidem seus ecos nos discursos valorativos sobre Geni, a heroína travesti da canção de Chico Buarque. Sobre ela recai toda a sorte de espúrias de uma sociedade hipócrita, egoísta, machista e individualista, que, respectivamente, apedreja (“Joga pedra”, “Maldita”), aclama (“Bendita”) e volta a apedrejar (de maneira mais violenta que anteriormente, pois aparentemente contente com o desfecho, graças à salvação realizada por Geni – mas, isso não é considerado – a cidade a ataca de forma grotesca: “Joga bosta”, “Maldita”) Geni, sempre em decorrência de seus interesses. Diferente de outras canções, do próprio Chico e de outros tantos compositores, essa canção, mesmo ao utilizar o lexema “bosta”, não foi censurada quando lançada. Por que? Nossa hipótese é de que não se tenha considerado o elemento crítico que compõe a mesma: a ironia que permeia toda a letra da canção. E que as palavras tenham sido lidas de maneira literal: como se a canção, de fato, fosse ao encontro do discurso moralista vigente quando, na verdade, criticava-o.

A ironia aparece no discurso da canção por meio da inversão valorativa ocorrida de acordo com os interesses da cidade que, “em romaria”, clama ajuda a Geni, o que é representado por seus poderes maiores: o comandante, o prefeito, o bispo e o banqueiro, que possuem suas vozes reificadas pelo coro, marcado pelo refrão, que simboliza a voz da cidade. Todas essas vozes aparecem em diálogo e são orquestradas pelo narrador. Para melhor compreendermos como esse mecanismo valorativo (sancionador) ocorre, tratamos a seguir das vozes dos sujeitos da canção.

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